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24 de Abril de 2024

‘Você acha que abafou, que não vão te pegar’

A.P., que matou um policial durante um assalto, conta como escapou de ser morto pela PM

Publicado por Vanice Cestari
há 10 anos

A. P., 45 anos

O que fez: matou policial

Idade ao cometer latrocínio: 25 anos

Pena total, de cinco condenações: 47 anos. Quatro de roubo de carro: 20 anos. Pelo latrocínio: 27 anos

O que o fez ir para o crime: briga com o pai

O que o teria evitado: evitar más companhias

Antes de começar, eu já vou te dizer: não sinto orgulho nenhum pelas coisas que eu cometi. Pelo contrário: sinto até vergonha.

Eu estava com 18 anos quando fui para o roubo pela primeira vez, em 1987. Eu nunca aprontei de menor. O que me fez partir para isso foram as amizades. Eu e meu pai, a gente não se dava bem. Minha mãe criou quatro filhos sozinha.

Passei a encontrar com meu pai depois que morreu meu padrasto, que foi um pai pra mim e pros meus irmãos, quando eu tinha 16 anos. Até aí eu tinha estudado e trabalhado. Fiz até a 5a série. Trabalhei no Mercado Municipal, numa grande distribuidora de revistas. Meu tio tinha barraca de fruta no mercadão. Antes de abrir o mercadão, eu ficava lá descarregando caminhão, carregando fruta com aqueles carrinhos. É uma delícia. Eu gostava de trabalhar à noite.

Depois que meu padrasto morreu, meu tio perguntou se eu queria conhecer meu pai. Falei: "Lógico". Meu pai é italiano, chucro, ignorante. Meu pai estava num lava-rápido lavando o carro dele. Meu tio apontou de longe o mais baixinho. Cheguei nele, dei bom dia. Ele não sabia quem eu era. Falei: "Sou seu filho, A.". Mesmo assim ele não acreditou. Tive que falar meu nome inteiro. O único que tem o sobrenome dele sou eu. Ele veio conhecer minhas irmãs. Ele já nos conhecia de pequenos, mas deixou minha mãe e foi viver a vida dele.

Como ele era bem de vida - é até hoje, e hoje ele me ajuda -, começou a querer dar ordens. E eu sempre fui ignorante nessa parte. Um dia uma tia por parte de pai ligou pra ele falando que eu estava na porta do prédio dela com um monte de cara usando droga. Eu nunca usei droga. Aí ele veio e levantou a mão pra minha cara. Eu briguei com ele e falei: "Só quem bate na minha cara é minha mãe. Você não me criou, não fez nada. O senhor não vai me comprar, que eu nunca me vendi. Procurei o senhor porque queria ter a companhia de um pai".

Na escola, sempre fui melhor na bola e os pais dos outros moleques iam nos ver jogando e era minha mãe que ia. Minha mãe que fazia pipa para mim, que me ensinou a rodar pião. Ela é tudo na minha vida. Jamais alguém poderá dizer que eu entrei no caminho errado por não ter sido adequadamente educado pelos pais. Minha mãe fazia o papel de pai e de mãe. Ela me levava até a porta da escola, e enquanto não fechava o portão ela não saía. Quando eu via ela indo embora eu pulava o muro pra ir jogar bola. Eu aprontava e apanhava mesmo. Se for ver, eu não precisava do meu pai. Lógico que precisa. Eu tenho meu filho de cinco anos, e digo pra ele: "Seu amigo sou eu". Quero estar presente, mostrar o certo pra ele, mesmo estando a 700 km. Vou pedir para a juíza autorizar a cada dois meses eu poder visitar ele. Vou na escola ver ele jogar. Tudo o que meu pai não fez comigo, eu faço com meu filho: jogo bola com ele, ensino a empinar pipa.

Meu padrasto impunha regras mas ele tinha esse direito. Meu pai está agora com uns 74 anos. Agora nos damos bem. Ele teve uma educação bem rígida. Na real, meu pai mesmo foi meu avô, até hoje. Meu avô me ensinava tudo. Entrei na escola sabendo ler, escrever e a tabuada.

Meu pai e eu brigamos. Ele foi pro lado dele. Eu estava com raiva do meu pai. Foi isso que me motivou. Eu queria um pai para ser meu amigo, dar conselho, não pra ficar só repreendendo. Não fazia nem 15 dias que eu tinha brigado com meu pai, já conheci uns caras que estavam nessa vida e eles viviam me chamando, porque sabiam que eu sabia dirigir. Mas eu batia o pé que não, porque eu trabalhava. Esse pessoal roubava carro no Brás, onde eu morava. "Você não vai fazer nada, a gente é que vai enquadrar, você só vai dirigir". Acabei indo. Começamos a roubar carro, a vender, a desmanchar. Começou a vir dinheiro fácil. Já saí do emprego. O cara quando entra pra essa vida, começa a ir pra gandaia. Antes eu ia pra baile com as minhas irmãs. Comecei a me distanciar da minha família, dos amigos mesmo, do lado do bem, e a andar com esse pessoal. Na gandaia: "Não, deixa que eu pago". Você quer ser o tal. Quando eu ganhava um salário, dava pro mês inteiro e sobrava ainda. O dinheiro das coisas que eu roubava e vendia era bem mais que o salário, e em uma semana não tinha mais. O cara esbanja, começa a comprar porcaria, quer ser mais que o outro. Às vezes o cara tem um tênis melhor que o seu e você quer comprar um melhor que o dele. É a idade. E para mudar a mentalidade, só o estudo.

Na época, eu não tinha medo de ser preso. Estava empolgado. Teve situações de a gente ter roubado carro, na hora a polícia chegar, você dá o pinote, não te pegam e você acha que abafou: "Não me pegaram e não vão me pegar. Eu sou mais eu". E é mentira. Eles pegam.

Fui preso em 1987, com 18 pra 19 anos. Tive quatro condenações por roubo de carro, que somaram 20 anos. Tive oportunidade de trabalhar na parte externa da penitenciaria de soldador. Fiquei um ano e meio trabalhando na parte externa. Em 1994, fiz o pedido para o semiaberto. O juiz negou. Falou pra eu aguardar mais um pouco. Pedi para outro diretor me ajudar. "Ah, quando eu puder, vejo o que posso fazer por você". Acho que pela má vontade, e eu era jovem, tinha 24 para 25 anos. Eu, cabeça dura, me revoltei, no outro dia pulei o muro e fugi.

Tinha uns caras na rua que tinham estado presos comigo, que eram bem mais antigo que eu, tinha cumprido 20, 15, tava em liberdade. Nessa fiquei 28 dias em liberdade e aí me chamaram pra fazer um assalto numa casa de câmbio. Eu era o mais novo de todos que participou dessa tragédia na minha vida. Éramos cinco. Minha função era só dirigir, dar o pinote. Deu pavor num das caras e ele abandonou a função dele. Gritaram pra mim entrar e segurar o pessoal. Fiquei segurando. Entraram, pegaram o dinheiro na parte de cima. Eram dólares. Embaixo era uma lojinha. Fachada.

Não agredimos nenhuma vítima. Infelizmente na hora de sair um rapaz que era policial militar não deu voz de prisão nem nada. Entrou já atirando. Eu tomei dois tiros e revidei. Infelizmente o rapaz veio a falecer. Me arrependo amargamente disso. Não fui só eu que atirei. Outro também atirou. Consegui sair baleado do lugar. Me jogaram dentro de um carro. Me levaram numa clínica. Um médico que trabalhava pros ladrão falou: "Não, pode jogar em qualquer lugar, que esse aí não tem nem jeito. Tá todo esfolado, vai morrer". Um dos tiros entrou e saiu e não senti nada. Mas outro, na barriga, estourou tudo por dentro. Aí, para não me jogar na rua, os parceiro pararam em Diadema e me jogaram na porta do pronto-socorro lá.

O médico tava acabando de dar o último ponto quando a PM invadiu a sala de cirurgia. Tava com umas vítimas, uma falou que era (eu). E era. Realmente fui eu que fiz. Dali já me arrancaram da mesa de cirurgia e começou a me interrogar do jeito deles. Apanhei pra caramba. Não senti a dor porque eu estava com anestesia geral. Daí passou, me transferiram para o Hospital Vergueiro algemado nos dois braços e corrente nas pernas. Torturando, torturando, torturando.

Entrou um coronel da PM depois que eu já tinha apanhado bastante e falou assim: "Você matou um filho meu". Acho que o soldado trabalhava na corporação dele. "Até 10 horas da noite você não vai mais estar aqui. Eu acabo com você". Não falei nada.

Aí acho que Deus pôs uma pessoa lá, um enfermeiro do hospital que me conhecia da penitenciaria. Entrou no quarto, olhou pra mim: "Te conheço de algum lugar". Eu lembrava dele e falei: "Sou eu, seu Lauro, P.". Eu sempre me pus no meu lugar de preso, sempre respeitei funcionário. Eles gostavam disso. E por causa de jogar bola eu era mais conhecido lá. "O que você aprontou?" Falei: "Ah, dei uma cabeçada aí. Fugi, fui fazer um assalto. Aconteceu de o rapaz morrer. Inclusive tão falando que eu não passo das 10 da noite." Ele falou: "Não, não esquenta. Eles fala isso pra assustar."

Aí ele saiu, quando voltou os cara tava descontando. Aí ele fez um auê, brigou, chamou o diretor do hospital. Só não morri mesmo por esse senhor. Eu já sabia que a pessoa que mata um policial a consequência é morrer na mão de policial. Eles caçam, e principalmente se vier na mão. Aí na hora chamaram a Polícia Civil, me puseram dentro da ambulância. Teve até uma briga entre a Polícia Civil e a Militar, porque a Militar queria continuar fazendo o que eles estavam fazendo e a Civil não deixou. Eu nunca pedi tanto pra voltar pra cadeia como eu pedi daquela vez, porque senti que não ia passar daquele dia.

Aí voltei pra penitenciária baleado, usando bolsa de colostomia (para drenagem das fezes), dreno urinário desse lado. Quando você chega assim depois de fugir, já vem um dos diretores com um cano de ferro, bateu na maca, perguntando se eu já aguentava tomar um pau, por ter fugido de lá. Aí outro diretor falou: "Não, ninguém vai pôr a mão nele". Fiquei quatro anos usando essa bolsa.

Depois que eu comecei a me recuperar, a andar, o outro diretor-geral me chamou na sala dele só pra falar: "Se depender de mim, você vai morrer na cadeia". Como eu era novo, tinha 25 anos, cabeça dura, olhei pra ele e falei: "E se depender de mim, vou fugir da sua cadeia de novo". O cara quando é novo e acha que está abafando, que é o tal, isso é mentira, ilusão. Bate de frente mesmo, fala que vai fazer, acontecer. Sofri quatro anos nessa daí. Perdi um rim porque ele não autorizava eu ir fazer a cirurgia.

Tentei fugir do hospital. Serrei a corrente, abri a algema, na hora que eu fui sair um funcionário me pegou por trás. Já esperava que eu ia aprontar. Não reagi nem nada. Me mandaram pra mesa de cirurgia. Tiraram um rim. O médico me disse que era uma cirurgia de risco, que eu tinha que ficar na UTI. Na mesma hora, saí da sala de cirurgia, fui colocado numa maca no pátio do hospital aguardar a ambulância vir. Porque eu tentei fugir eu cometi uma falta. Eram 11h. A ambulância chegou às 15h. Fiquei 4 horas esperando.

Peguei infecção hospitalar, deixaram um bucho de gaze dentro da minha barriga. Assim mesmo, me recuperei. É mão de Deus. Ou era pra mim pagar mesmo. Falou: "Não, cê vai pagar pelos seus pecados, pelos seus erros". E mereci, porque aprontei, mesmo.

O sistema carcerário não regenera ninguém. É a cabeça do cara, ele gostar da família, respeitar o espaço do outro. É o cara que tem que colocar na cabeça dele: "Vou melhorar, vou ser gente de verdade". O sistema poderia regenerar, se o Estado investisse em cursos profissionalizantes. Tem cara que não sabe fazer nada.

Minha cabeça começou a mudar em 2000, quando conheci o diretor do setor de educação em Presidente Venceslau e a dona Adriana, professora. Me chamaram para concluir os estudos. "Vamo lá, a gente vai te ajudar". Eu fui começando. Me arrumaram um serviço dentro da unidade na área de educação. Eu era do posto cultural. Levava livro pro pessoal. Pegava autorização do diretor pro pessoal aprender a mexer no computador. Não tinha internet. Eu aprendi lá. Isso incentiva o preso. Curso profissionalizante... Hoje você tem acesso a tudo através do computador - até emprego. Estava trabalhando mas procurando algo melhor. Até agora não tive a experiência de o patrão ficar com receio de empregar ex-presidiário. Trabalhei em oficina mecânica na época do semiaberto. Durante sete anos, ia trabalhar e voltava pra dormir aqui. Pessoas que me conheciam me indicavam. Quem arrumou emprego pra mim na construção civil foi um cunhado meu. Gosto da construção civil. Aprendi a profissão de soldador dentro da Penitenciária do Estado, onde tinha Senai. Hoje ela é feminina.

De cada 10 amigos que tenho, os 10 trabalhariam se tivessem oportunidade.

Infelizmente, os novo, o jovem que chega aí, eu procuro orientar: "Aproveita, que sua condenação foi pouca, vai trabalhar, cê vai embora logo". Que é 26 anos da minha vida que eu tô nesse estado. Ele até escuta, mas não sei ele deixa. Tem outros que incentivam pro lado do mal. Sai daqui com parceiros novos. Tem cara aqui condenado a sete meses, por Maria da Penha (bater na mulher), 171 (estelionato). Isso não existe. Põe o cara pra fazer serviço comunitário. Chega aqui com cabeça de trabalhador e sai malandro. A mistura às vezes estraga.

Não é vida, cara. Cê se empolga, cê acha que tá andando com carro bom, corrente de ouro, acha que tá abafando. E não é nada disso. Não tem coisa melhor do que você conquistar trabalhando. Foi que nem agora, quando saí de liberdade, há dez meses, depois de 25 anos preso. A juíza me deu o regime aberto. Comecei a trabalhar em obra no shopping Center Norte, fazer mezanino, essas coisas. Você gosta do negócio. Você vê o dinheiro vindo, sente que fez por merecer. Meu salário rendia, sobrava. Meu irmão, mais novo que eu, conseguiu a casa dele através do trabalho honesto, dos estudos. E quando você rouba, é mentira, não sobra nada, porque está vindo um dinheiro de um mal que cê tá praticando pra outras pessoas. Eu penso dessa forma. Naquela época, eu não pensava.

A força-tarefa de juízes determinou que fosse feito com urgência o meu exame criminológico. A assistente social e a psicóloga perguntaram tudo sobre minha infância. Fui aprovado no exame. Mas o promotor achou que não tava bom e recorreu da minha liberdade. O Conselho Nacional de Justiça desconsiderou o recurso do promotor. Ele recorreu em outra instância O Tribunal de Justiça acatou o recurso e determinou que eu voltasse. Nos 10 meses em que fiquei fora, nunca tomei um enquadro da polícia. Quando você está fazendo o bem, não vem coisa ruim pro seu lado. Eu já tava dez meses trabalhando, pagando minhas contas, eu que pago o aluguel da minha mãe, que eu moro com ela. Minha ex-mulher mora com meu filho em Presidente Venceslau. O advogado entrou com recurso, até em Brasília, mas a Justiça é burocrática. Pra gente, tinha que ser rápida, porque é a gente que tá passando por isso. Não fui intimado. O oficial de Justiça foi no endereço antigo. O endereço estava atualizado na Barra Funda. Não foram lá. Mas quando vi que o prazo vencia dia 8, que era minha vaga disponível aqui no Belém, depois eu teria que ir pra um CDP. Aí vim sem ofício, sem nada. Bati na porta aqui, porque era determinação da juíza do TJ. E minha intenção é ficar em paz na rua. Fiz exame criminológico novamente, porque teve que incluir psiquiátrico também. Fui aprovado. Pela primeira vez o MP foi favorável em um recurso a meu favor. Me atrapalhou um pouco, mas a proposta de serviço com carteira assinada tá de pé ainda. E provavelmente essa semana tô indo embora. Não vou decepcionar. Tenho plena certeza, no resto que eu tenho para viver. Porque vivi mais da metade da minha vida no sistema carcerário. Cheguei com 18 anos. Estou com 45.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,voce-acha-que-abafou-que-nao-vao-te-pegar,1152997,0.htm

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